Pequena nota do tradutor: o presente manifesto é fruto do 23o Congresso Católicos e Vida Pública, organizado pela organização espanhola Asociación Católica de Propagandistas, e é dirigido para a sociedade espanhola. Todavia, como os problemas apontados pelo documento não são em absoluto alheios à sociedade brasileira, oferecemos ao público esta tradução. O link para a versão em espanhol encontra-se aqui.

 

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Politicamente correto: Liberdades em perigo.

Manifesto do 23º Congresso Católicos e Vida Pública / novembro 2021

Apresentação do Manifesto

No Ocidente o politicamente correto se tornou uma megaideologia, abrangendo todos os aspectos da vida pessoal e social, com uma crescente capacidade de condicionar, limitar e, em seu extremo, cancelar liberdades civis, em especial a liberdade de expressão, bem como as liberdades religiosas e de consciência. Diante dessa situação, o Congresso Católicos e Vida Pública, cuja 23ª edição aconteceu em Madrid entre os dias 12 e 14 de novembro de 2021 (link), fez-se ouvir; essa é a voz de milhares de congressistas que acompanharam nossas sessões de forma presencial ou virtualmente.

Essa voz está refletida no presente Documento, através das suas 25 observações e da reflexão geral que o introduz. É a voz que se fez ouvir nas diferentes mesas de debate do Congresso e nas diferentes oficinas, onde pudemos refletir e debater sobre os efeitos do politicamente correto e do movimento woke, de que é consequência direta, sobre a liberdade nos campos da educação, da juventude, da família, dos meios de comunicação, das empresas e do ambiente de trabalho, da vida política e da atuação legislativa, da ciência, arte e literatura atuais e, como se tudo isso não bastasse, sobre a liberdade de estudo e pesquisa histórica e até sobre a fixação na memória que a sociedade tem do seu próprio passado. Um elenco extraordinário de especialistas em todas as questões se encontrou na Universidade CEU São Paulo (NdoT: em Madri, Espanha), e tantos outros contribuíram a partir de suas casas, por home office, em atenção às normas sanitárias anti-covid.

Este Manifesto expressa o que uma parte bastante significativa da sociedade espanhola atual, que aos poucos toma consciência do problema, pensa a respeito da progressiva invasão do espaço público e da vida privada de uma inquisição intolerante e extraordinariamente radical. No Congresso Católicos e Vida Pública alegra-nos e satisfaz ter a oportunidade de oferecer um meio de expressão, que agora deverá ser levado em conta pelos meios de comunicação e das instituições competentes.

Rafael Sanchez Saus
Diretor do Congresso Católicos e Vida Pública

Manifesto

Diante da ditadura do politicamente correto

Uma pandemia está em curso no mundo, a pandemia do politicamente correto. Existem as pandemias de doenças que atacam o corpo e provocam dor e morte, como a que nos golpeia atualmente, de modo mais ou menos próximo. Porém, sem de modo algum menosprezar os terríveis efeitos do vírus, é preciso saber que existe um outro tipo de pandemia, e esta ataca as liberdades e o espírito. Esta pandemia do politicamente correto também provoca sofrimento, que resulta do “cancelamento” político, na supressão de liberdades, assim como outros tipos de morte civil ou morte do espírito.

Estamos diante de um movimento ideológico, qualificado por pensadores insuspeitos de fanatismo religioso (Eugenio Trias, Noam Chomsky, etc) como uma ditadura intolerante, um novo tipo de totalitarismo. Diversas tendências de pensamento já o qualificaram o fenômeno como uma nova forma de nazismo, fascismo, comunismo ou nova inquisição, que introduz formas de discriminação e confronto talvez mais sutis, mas não menos efetivas.

Com efeito, frente aos totalitarismos do século XX, estes sólidos e ferrenhos, que golpearam liberdades, crenças e a própria vida de milhões de pessoas, este totalitarismo líquido (ou brando) não golpeia, mas, sufoca, asfixia. Não mata o corpo, ao menos por ora, mas, mata o intelecto livre e o espírito. É uma nova classe de falsa religiosidade que, junto ao secularismo pós-moderno, propõe a construção de um mundo onde o cristianismo seja reduzido a mera condição de recordação, uma má recordação. Esse totalitarismo procura não apenas eliminar o fenômeno religioso ou seus valores éticos do espaço público – como o velho laicismo – quer eliminá-lo também do espaço privado e pessoal, atacando-se o foro íntimo das consciências, das famílias, da educação, do ócio, linguagem, gestos.

Em termos civis, ameaça causar um dano profundo nas raízes da democracia, da tolerância, da solidariedade, da igualdade diante da lei, assim como nas liberdades estabelecidas nas cartas de direitos humanos e, em resumo, nos valores e nas crenças que vivificaram e fizeram possível nossa tradição ocidental e europeia.

O politicamente correto nos empurra progressivamente a uma sociedade distópica, na qual provavelmente já estamos vivendo há muito mais tempo do que pensamos. Uma distopia que, apoiada na engenharia social, começa cancelando obras de filosofia e de humanidades, substituídas pela onipresença de telas eletrônicas, como em Fahrenheit 451; continua subvertendo a família, a sexualidade e a reprodução, como em Admirável Mundo Novo; passa por um vigilante Grande Irmão, controlando o passado histórico para dominar o futuro, criando uma novilíngua, como em 1984; e,  conclui construindo um conglomerado ideológico-religioso permissivo para substituir a religião tradicional, como em O Relato do Anticristo ou em O Senhor do Mundo. O resultado é uma Matrix em contínuo avanço com polícia e crimes de pensamento.

Não se furtar a desafiar o Politicamente correto.

O primeiro passo é identificar e denunciar o problema, impedindo assim suas estratégias de subterfúgios. Para isso é necessário rastrear as origens, a raiz do politicamente correto; partindo-se do marxismo histórico e cultural e através dele reconhecer os elementos próprios à “luta de classes”, porém, agora com o complemento de uma disputa de gêneros e sexos, com a luta de raças e outros pretensos antagonismos, todos instigados artificialmente desde uma falsa “justiça social”.  Também se reconhece o dito marxismo na obsessão em impor a “hegemonia cultural” de seus postulados ideológicos, mas, não através do convencimento em um debate aberto, mas, pelo controle desde dentro, até toda e qualquer dissidência ser impedida. Não obstante, esse consórcio ideológico também faz uso de determinados elementos procedentes do pós-modernismo de 1968 e de um liberalismo progressista que, em nome da tolerância e do respeito a determinadas minorias, contribuem para a demolição dos fundamentos sobre os quais a civilização ocidental foi construída. Certamente o respeito às minorias, aos desfavorecidos, é algo louvável e está profundamente ligado ao coração do Cristianismo, como também a ideia de tolerância, ainda que o primeiro não deva ser derivado de um igualitarismo injusto e nem a segunda, gerar um desinteresse em se discutir a necessidade da verdade.

É urgente tomar consciência de um problema que se agrava dia a dia diante dos nossos olhos. Mas ele não nos pode levar a mera proteção diante do fenômeno, tampouco ao revide. O Evangelho é mais válido e necessário do que nunca, pois há que se proclamar a Jesus Cristo com audácia na sociedade atual, porém, sem cair nos mesmos erros em oposição às liberdades pessoais e coletivas que cometem aqueles ideólogos.

É necessário ser ativos ou proativos tanto na defesa como na construção da civilização de amor que desde Paulo VI há pontificado os Pontífices. A tal efeito, desde a esperança e com o otimismo próprio dos que se sabem filhos de Deus e cidadãos do Reino, apelando tanto aos católicos como a todas às pessoas de boa vontade, manifestamos:

Sim às liberdades civis

  1. A necessidade inalienável de defender as liberdades civis, contando para isso com o apoio dessa parte crescente da sociedade, que percebe com cada vez mais intensidade e enfado o sufocamento das liberdades implicado no politicamente correto. Fundamental defender as principais liberdades em perigo: a liberdade religiosa, a liberdade ideológica, a liberdade de expressão, liberdade de educação e ensino.

Sim à liberdade religiosa e de pensamento

  1. Como afirmou São João Paulo II, a liberdade religiosa é uma exigência inseparável da dignidade de cada pessoa, constituindo uma pedra angular que compõe os direitos humanos. Obstáculos ao culto, ao livre exercício e manifestação da fé em âmbito público sob pretexto de proteção às minorias religiosas ou da laicidade, atenta contra o direito humano e fundamental à liberdade religiosa.

Sim à liberdade de expressão

  1. É essencial respeitar a livre expressão de ideias e crenças sempre que estas não sejam um ataque direto à dignidade do homem, como também respeitar a própria linguagem, sem imposição de perversões linguísticas ou de neologismos, que acabam por viciar o debate público. A imposição total ou parcial de uma linguagem “inclusiva” ou de fórmulas linguísticas politicamente corretas implica o banimento justamente daqueles que não estão obrigados a assumir tais expressões linguísticas ou as posições ideológicas que elas encobrem.

Sim à liberdade de ensino e educação.

  1. A primeira instância educacional está nos pais, que possuem os direitos e autonomia para decidir sobre a educação de seus filhos, sendo o Estado um agente subsidiário na educação quando esta não puder ser provida pelos pais; muito especialmente no que diz respeito a educação afetivo-sexual, ou de valores ou de crenças.
  2. É preciso que as instituições educacionais sejam coerentes na busca e transmissão do conhecimento, da ciência e da verdade em busca da liberdade. As instituições educacionais religiosas podem e devem se fazer respeitar, com coerência, no ideário católico que professam e que foi escolhido pelos pais, sem dilui-lo ou interpô-lo em exigências ideológicas que atentem contra os seus princípios. Para isso é fundamenta que as instituições educacionais protejam seus professores frente a coações ou ‘cancelamentos’ injustos.
  3. A universidade é âmbito de diálogo científico e da crítica de ideias. Tal debate, porém, não pode ser dirigido pelo Estado, nem por grupos de poder ou pressão midiática ou econômica. O debate sobre qualquer ideia científica tem seu lugar em sala de aula, em laboratórios, textos científicos bem fundamentados; não podem ser objetos de crivo de comitês de verdade “woke”. Logo, é fundamental que as universidades públicas ou privadas que exerçam livremente a vocação de pesquisa e transmissão da Verdade.

A “cultura do cancelamento” pressupõe um cancelamento da cultura

  1. A visão Católica defende sempre o valor da razão na busca da Verdade e do bem comum, sem, contudo, cair no racionalismo abstrato, que a separa da tradição e a põe a serviço do poder ou da ideologia. Igualmente, o Cristianismo valoriza o papel do sentimento e da vontade, vinculados ao coração humano; porém o sentimentalismo e o voluntarismo político tiram a política de seus fundamentos na justa medida da razão e de um bem objetivo.
  2. Reivindicamos a história e tradição do Ocidente, da Europa e da Espanha como uma história que logrou grandes êxitos sempre que permaneceu fiel a suas raízes no logos grego, no jus romano e na caritas judaico-cristã. Isso não implica fazer pouco de erros em sua história, porém, diante deles, preferimos perdoar a condenar, preferimos aprender com os ditos erros sem incorrer em anacronismos absurdos.
  3. Afirmamos a verdade com minúsculas, acessível através da razão e das ciências, humanidades e pela filosofia, e a Verdade em maiúsculas, que está em Deus, igualmente acessível através da razão, e que tem sua encarnação em Cristo.
  4. Uma variante do politicamente correto estende seus tentáculos no campo da beleza artística, estabelecendo uma tirania do “esteticamente correto”. Artistas que optam por defender a beleza real da Criação, ou que continuam a grande tradição da arte sacra, correm sérios riscos de serem cancelados. Contra tal situação apoiamos os artistas que continuam na tradição que reúne a Beleza com a Verdade e o Bem.
  5. Os critérios para o reconhecimento de um autor em um cânone de grandes obras literárias, artísticas ou cinematográficas, ou para a concessão de prêmios também temos visto injustamente submetidos aos embates do politicamente correto, cancelando ou introduzindo autores por critérios à parte do valor intrínseco da obra, mas a aspectos externos (raça, sexo…) ou de submissão ao politicamente correto. O Cancelamento de grandes autores clássicos constitui uma aberração de efeitos incalculáveis sobre a formação das novas gerações e sobre o futuro da cultura.

Combater o politicamente correto pela paz mundial e pelo progresso autêntico.

  1. O politicamente correto nos media e nas redes sociais acontece através do menosprezo do pensamento racional, através do relativismo, do sentimentalismo e do pragmatismo. Este é o terreno de cultivo das fake news, da cosmovisão progressista dominante nas mídias e do sequestro ou encobrimento da verdade. É necessário reivindicar o valor constitutivo da verdade na mídia e sua referência ao bem comum, para além do politicamente correto.
  2. Os meios de comunicação são parte do problema, mas, podem ser parte da solução. Neste sentido, valorizamos muito positivamente a existência e aparecimento das novas mídias, que fazem frente à situação e são ponta-de-lança para uma batalha cultural necessária e urgente, tanto em informação como em entretenimento.
  3. Amiúde, as empresas, especialmente as grandes corporações, se veem pressionadas desde várias instâncias públicas ou internacionais a internalizar o politicamente correto, funcionando assim como potentes engrenagens em sua expansão. Frente a isso temos que defender a liberdade do empresário, do trabalhador na hora de exercer suas convicções e suas crenças, apoiando especialmente as empresas de ideais cristãos, ou que façam frente com valentia às imposições do politicamente correto.
  4. O projeto para uma ideologia globalista, assim como a promoção do politicamente correto por parte das instituições da Comunidade Europeia, ou de organismos internacionais, tais como a ONU, supõe um grave risco que ignora seus respectivos princípios constitutivos, fazendo-as cair em um dirigismo cultural e em uma manipulação a serviço de interesses ideológicos que não receberam respaldo eleitoral. A atual crise na Comunidade Europeia e em outros organismos internacionais deve-se muito a esta situação. A Europa há de recuperar suas raízes cristãs, como defendia reiteradamente São João Paulo II em um tempo em que se começava a enfraquecer o legado cristão na construção europeia.
  5. É necessário assumir um grande propósito cultural, usando-se das verdades inconvenientes, da liberdade de expressar-se respeitosamente, mas com a valentia que permite a denúncia profética diante do injusto ou falso, diante das modas ideológicas e do juízo do mundo. O grito de São João Paulo II, “Não tenhas medo!” deve inspirar uma atitude que não se preste a ocultar princípios e nem permita subserviência a eles.

Assumir o desafio da fé, da esperança e da caridade.

  1. Como cristãos, defendemos a tolerância, apoiamos e defendemos a todos aqueles que sofrem qualquer tipo de maltrato, também as minorias que, pelos mais diversos motivos, sofrem o peso da História; mas, não compactuamos com a instrumentalização ideológica de tais indivíduos ou minorias para gerar sentimento
  2. de culpa coletiva nem procurar ressarcimentos que estabeleçam a imagem de um mundo maniqueísta, dividido entre vítimas e opressores.
  3. Confiamos com esperança na participação da sociedade civil para fazer frente com coragem a esses desafios e a criar iniciativas audazes para a eles responder. Conclamamos também os movimentos eclesiásticos a uma desejável coordenação de esforços, sem menoscabo de suas particularidades.
  4. Defendemos a Doutrina Social da Igreja de modo integral, desde seus Tratados de Economia, Direito e Política, que defendem a verdadeira Justiça Social, assim como aos excluídos e aos pobres, amados preferencialmente por Deus e por Sua Igreja, até os tratados que defendem a Vida e a Família. Uma parte importante da Doutrina Social da Igreja é atualmente considerada politicamente incorreta, motivo que se faz especialmente necessário seu ensino e sua promoção.
  5. Defendemos o humanismo cristão que está na raiz da tradição humanista ocidental e que traz uma concepção plena e transcendente da natureza humana. As Humanidades e a Filosofia enraizadas em tal humanismo, assim como a Doutrina Social da Igreja, são os melhores antídotos de formação frente ao politicamente correto.
  6. O dano do politicamente correto é especialmente grave quando falamos da defesa da vida – contra o aborto e a eutanásia – e da defesa da família, que devem ser consideradas questões prioritárias. Faz-se totalmente necessária a reativação do movimento pró-vida nacional e internacional, e a isso a Igreja deve prestar apoio explícito e incansável.
  7. O eclipse de Deus promulgado pelo secularismo e que está na raiz do politicamente correto provoca o eclipse da pessoa humana, assim como da sua dignidade, da sua liberdade e do seu desenvolvimento moral. O século XX, conhecido como o século das ideologias, um século sem Deus, foi o período dos maiores genocídios e martírios, superando todos os demais da História somados.
  8. Portanto, defendemos uma concepção de sociedade e de política abertas à transcendência e que tenha como referência última em Deus. Isso está nas raízes da tradição ocidental, incluindo suas etapas pagãs, gregas e romanas. A plenitude desta concepção é uma sociedade restaurada em Cristo, com a mediação do seu Corpo Místico: a Igreja.
  9. Sinta o cristão convocado a enfrentar o politicamente correto e seus efeitos desde o que São João Paulo II chamou de “martírio da coerência”, assumindo o testemunho dos beatos e santos mártires do século XX, assim como aqueles que defenderam a fé com coragem em contextos laicos ou cujo exemplo de entrega evangélica tem sido semente de conversão.
  10. Em resumo: chamamos a exercer a fascinante defesa da Verdade, da Bondade e da Beleza.

Madri, 14 de novembro de 2021.

 

Tradução: Person Araújo (instagram: @person.araujo).